sábado, 17 de abril de 2010

A TRAVESSIA


(IGdeOL)

O porto não é tão distante como imaginava.

Cheguei ao local na noite passada conduzido pelo meu padrinho Florêncio que tinha a missão de mostrar-me o barco que há muito tempo transportou, com toda a segurança, o meu avô para o outro lado da vida.

Inicialmente nada pude observar. Parecia-me que meus olhos estavam vendados, tal a escuridão que ali se fazia. Vi a luz gradativamente ao tempo em que ouvia a voz do meu padrinho dirigindo-se ao barqueiro:

- Este é o poeta de quem te falei, neto do velho Gonçalves e meu afilhado. Ele tem disponível alguns talentos que economizou da venda de livros de versos e deseja acertar o preço da futura viagem em teu barco...

Ouvi até esse ponto da conversa. Meu padrinho diminuiu o tom da voz. Ambos gesticulavam. Pareciam dois italianos amigos que se encontram antes da missa das manhãs de domingo.

Recomposto observo o cenário e presto atenção naquela figura misteriosa que se chama Caronte. Vestes negras, barba branca (longa e espessa) , vivacidade no olhar, rosto majestoso e severo. Velho, muito velho...

Já desfeito do choque inicial perguntei-lhe, aproveitando o momento em que se encontravam nossos olhares:

- Caro Caronte, quando posso fazer a travessia?

- Quando findar o teu tempo, jovem poeta.

- E o custo da viagem? Posso pagar-te antecipado ou financiar pela Mortevest?

- Não caro poeta, nada recebo antecipado e a financeira não é da minha confiança.

- Então, como devo proceder?

- Teus entes vivos é que farão o pagamento. Tua alma embarcará "no meu barco" após eles terem celebrado as devidas cerimônias fúnebres e teu corpo tenha sido convenientemente cremado e/ou sepultado. Não poderão esquecer-se de colocar uma "garoupa" no teu "Olho de Shiva", que retirarei para o pagamento do transporte.

- E se tal não ocorrer?

- Vagarás pela margem do grande rio durante cem anos, entre troncos e barrancos, para que se torne limpo, puro, leve e finalmente digno de adentrar ao meu barco.

- Reserva-me uma passagem, por favor! Volto ainda hoje à Itapema. Gastarei com bom gosto os talentos economizados até agora e concluirei o meu testamento.

Despedi-me de ambos com um triplice e fraternal abraço.

Padrinho Flor ficou no porto contando causos e recitando meus versos para entretenimento de Caronte. Aguardam o meu retorno com uma nota de "garoupa" sobre o olho da alma.




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